Receitas de família: segredos por desvendar

Temos dedicado algum tempo à investigação sobre as origens da gastronomia açoriana e a sua evolução nas diferentes vertentes, uma vez que constitui uma parte importante do nosso património cultural.
Trata-se de uma pesquisa que não tem sido fácil devido a escassez de fontes e bibliografia sobre o tema. Como já tivemos oportunidade de referir são poucas as obras publicadas que abordam a gastronomia açoriana. Para além disso, as referências que existem são apontamentos genéricos de cronistas e historiadores que foram registando para a posterioridade factos relacionados com a História dos Açores ao longo de mais de cinco séculos.
A gastronomia açoriana foi percorrendo, ao longo dos tempos, um caminho de passos lentos, incorporando aquilo que sempre teve e o que vinha chegando de lugares remotos como a Índia das especiarias ou as culturas do milho e da batata das Américas.
Os descendentes dos povoadores foram adaptando os seus hábitos e preferências alimentares de acordo com produtos que tinham acesso, fossem eles com origem da ilha ou vindos de terras distantes a bordo das naus.
E assim se foi trilhando um caminho paralelo da “cozinha pobre” (do povo) e a “cozinha rica” (das casas abastadas e senhoriais). Enquanto o povo se sujeitava a uma alimentação de subsistência com os produtos da horta, do pomar, da matança do porco e algum peixe, nas casas senhoriais de Angra ou de outros polos com mais povoados dos Açores, senhoras ou as suas criadas de servir esmeravam-se na preparação de receitas que passaram de geração em geração, criando novos pratos ou incorporando influências de outras realidades como a inglesa, francesa, flamenga ou hebraica.
Muitas dessas receitas eram transmitidas oralmente ou então foram registadas em papel, mas bem guardadas, pois, só assim era possível impressionar os convidados com variadas iguarias cujo modo de confeção se fazia mistério. Alguns desses registos de receitas de outros tempos perderam-se por diferentes razões, mas outros têm chegado até aos nossos dias.
Pouco tempo depois do lançamento do cozinhaacoriana.pt, que ocorreu no passado mês de janeiro, tivemos conhecimento da existência de um desses tesouros que são os antigos registos de receitas de família.
Graça à generosidade do ilustre historiador terceirense Carlos Enes, temos na nossa posse um exemplo desses registos de receitas que pertenceu aos descendentes de uma das primeiras famílias de povoadores da ilha Terceira. Mais concretamente, trata-se de um registo de largas dezenas de receitas, quase na sua totalidade de doçaria, que estão lavradas numa agenda refente ao ano de 1925.
Uma primeira análise do conteúdo da referida agenda permite concluir que as primeiras receitas terão sido registadas ao longo dos anos 20 do século passado, mas também existem entradas que serão, certamente, de períodos mais tardios, pelo menos até ao final da primeira metade do século XX.
Folheando os dias e os meses dessa preciosa agenda de 1925 transformada em livro de receitas de família, podemos encontrar formas de confecionar bolos (cerca de meia centena), doces variados, pudins, tortas, biscoitos, bolachas, diferentes formas de pão, recheios para bolos, compotas, geleias ou licores. No mesmo registo, pode-se ainda observar receitas da doçaria tradicional açoriana, mas também, do continente e estrangeiro.
Na parte final do mesmo registo estão algumas receitas de sopas, pratos de carne, peixe, ovos, entre outros, mas em menor número quando comparado com o valioso repositório de doçaria que importa estudar, até porque muitas das entradas são referentes a bolos e pudins que terão desaparecido ou não se conhecem confeções recentes.
Este é, pois, um exemplo como os antigos registos familiares de receitas podem ser muito relevantes para o estudo da gastronomia açoriana. É importante ter acesso a documentos como este que nos veio, em boa hora, parar às mãos.
Por isso, deixamos o apelo. O tempo de guardar as receitas de famílias a “sete chaves” já lá vai. É altura de partilhar esse conhecimento com todos como se partilha uma boa refeição.

  Hélio Vieira

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