“Pratos cheios de história e sabor”

As tradições gastronómicas da ilha do Pico podem ser potenciadas para a atividade turística. Helena Juliano está a elaborar o inventário do património gastronómico do Pico.

 

Tem efetuado nos últimos tempos uma recolha destinada a elaborar um inventário do património gastronómico da ilha do Pico. Como surgiu a ideia de fazer esse trabalho?

A ideia surge da cumplicidade entre um trabalho que tem sido desenvolvido pela Câmara Municipal da Madalena e o autor do projeto, Pedro Cota e que vem em resultado da preocupação manifestada pelo presidente da edilidade José Antônio Soares.

Era urgente implementar no terreno uma série de ações para que o crescimento turístico da ilha não bulisse com as suas tradições e com todos os aspetos que lhe são peculiares. Pretende-se que os valores tradicionais e patrimoniais sejam evidenciados em todas as áreas de desenvolvimento e que de modo algum a globalização e o crescimento turístico as deturpem.

Pelo contrário, que haja uma preocupação clara pela sua preservação e seja esta realmente a grande mais-valia do Pico na sua oferta turística. A especificidade do seu ADN.

 

Dessa pesquisa resultou a recuperação de algumas espécies endógenas e produtos locais utilizados na culinária de outros tempos do Pico. Quais os aspetos mais relevantes que foram inventariados?

Foi necessário efetuar uma pesquisa bibliográfica, da cultura, desenvolvimento económico e enquadramento histórico da ilha do Pico e das sua gentes com vista a uma melhor compreensão das necessidades de subsistência deste povo, das suas dificuldades e em que medida o fluxo migratório e o tempo, influenciaram a sua evolução, resultando deste conjunto de fatores, hábitos e necessidades concretas, no fundo, cultura, no verdadeiro sentido da palavra e cruzando esta abordagem com a deteção minuciosa no terreno de procura de gentes sábias, de relatos de hábitos, de tradições e de saudades.

A nostalgia tem o dom da necessidade de exteriorização de emoções que quando triadas nos cedem conhecimentos e informações importantíssimas para fundamentação de projetos desta natureza.

Este método cruzado de fatos e opiniões permitiu-nos a identificação de espécies endógenas e produtos locais de grande valor cultural e gastronómico que apesar deste percurso continuam acessíveis e de grande interesse para a preservação dos seus valores.

Aliás, um desenvolvimento concertado da oferta gastronómica do Pico, só é possível com a introdução e utilização de produtos e especiarias resultantes da sua história.

A singularidade do Pico tem que estar presente na sua oferta gastronómica. Esta é a sua riqueza e a sua identidade.

 

De que forma se pode integrar a cozinha do Pico no contexto histórico dos Açores, tendo em conta as suas especificidades e semelhanças?

Os Açores são a riqueza inquestionável que todos conhecemos, porque cada uma das ilhas é uma fonte inesgotável de virtude, riqueza e potencial. O Pico é disso prova. A sua história, êxodo migratório, dificuldades, o seu terreno pobre e duro, a salinidade ou as intempéries, atribuem à gastronomia do Pico, especificidades únicas.

O Pico é história dos Açores, a gastronomia do Pico e a dureza da sua diferença é história e por si só faz parte deste todo que são os Açores.

 

Considera que a gastronomia açoriana deveria merecer maior interesse no que se refere ao seu estudo?

Completamente. Aliás, todas as ilhas e lugares merecem o devido estudo. Esta pesquisa foi uma demonstração clara do que ainda muito há a fazer nesta área.

A cultura gastronómica está inequivocamente ligada à sua história. Há que apurar a verdadeira origem dos hábitos e em que medida as condições encontradas influenciaram a sua evolução ou modificação. O que nos une à origem das nossas influências e porquê? Que exata origem é essa? Porque alteramos os nossos hábitos de consumo? Analisar e pesquisar o valor nutricional de imensos produtos do Pico que deixaram de ser consumidos? Porque a comida do Pico é tão intensa? Os pratos do Pico têm “acento”?

Tenho hoje muito mais dúvidas do que antes de iniciar este projeto. Tenho hoje uma desmedida vontade de mais saber. Saber origem, saber história, mas saber também do que dispomos ainda e como podemos inserir estes produtos em um quadro evolutivo e atualizado da gastronomia do Pico.

 

O património gastronómico pode ser um fator com maior peso na oferta turística da Região?

O património gastronómico do Pico tem com toda a certeza um enorme peso na sua oferta turística. Aliás, a gastronomia traduz património identitário do Pico.

Quem nos visita procura diferença, carisma, tradição e exclusividade. Existem no Pico pratos únicos que não se podem encontrar em qualquer outra parte e são de difícil réplica. Pelo seu modo de confeção, bastante artesanal e peculiar, pela qualidade dos seus produtos e matérias-primas, influenciadas por um clima húmido e temperado e com enorme salinidade. Por um lado, podemos encontrar uma quantidade significativa de pratos singulares criados em resultado das limitações e dificuldades de outrora.

Por outro, as paragens das naus vindas das Índias, trouxe especiarias e pratos ainda hoje presentes na nossa gastronomia, havendo ainda a considerar o cruzamento de gentes do continente de várias Regiões que também esteve na base de diversos pratos, mas com paladares completamente diferentes porque nascem de uma junção, são temperados com especiarias específicas, portanto, diferentes e muito desafiantes.

É essa a singularidade que os nossos visitantes procuram. Pratos cheios de história e sabores.

 

Cortesia “Diário Insular”

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