A chegada dos primeiros povoadores às ilhas dos Açores, a partir da segunda metade do século XV, foi antecedida do lançamento de animais de modo a assegurar alimento para quem se aventurava a constituir novos povoados em terras desertas no meio do Atlântico.
Para além dos meios de subsistência alimentar que seriam assegurados em terra, os primeiros colonos das nove ilhas açorianas contaram com os recursos disponíveis no mar, abundante em diversos peixes, crustáceos e moluscos.
O cronista Gaspar Frutuoso refere em “Saudades da Terra” (Livro VI, Volume II), que no início do século XVI já se consumia em São Miguel “pescado de toda a sorte”, fazendo parte da dieta alimentar desse tempo espécies que ainda hoje são capturadas nos mares dos Açores como o cherne, congro, goraz, pargo, garoupa, abrótea ou sargo e também marisco (cavaco e lagosta). “Depois de achada a ilha, mais de cinco anos, não havia homem que não tivesse hanzolo [anzol?]. Costumavam fazer uma isca grande de carne, amarrando a uma linha e atando a linha a uma vara de ginja, por não haver ainda canas de pesca nesta terra; desta maneira pescavam e era tanto peixe que então matavam e mais dele sem hanzolo, que agora com ele”, escreveu Gaspar Frutuoso.
Embora os produtos da terra tenham sido sempre ao longo dos tempos a base da alimentação dos açorianos, o peixe também ocupou um lugar de destaque na cozinha dos Açores. Mesmo os povoados mais distantes das zonas litorais eram regularmente abastecidos com peixe fresco. Até quase ao final do século XX, os “nabiças” com os seus cestos de vimes percorriam as localidades das ilhas para vender peixe fresco. Durante os meses de verão, eram efetuadas as reservas de peixe para os meses de inverno, altura em que estado tempo nem sempre permitia a atividade piscatória, sendo nesse tempo frequente o recurso a técnicas na conservação em sal, secagem ao sol ou salmoura.
Em 2001, Augusto Gomes publicou “O Peixe na Cozinha Açoriana e Outras Coisas Mais”, o último livro que editou sobre a gastronomia regional. Ao longo de quase 300 páginas, o gastrónomo terceirense apresenta mais de uma centena de receitas tradicionais açorianas correspondentes a cada uma das espécies mais consumidas de peixe, mariscos e molúsculos.
Mas nessa obra de referência sobre a importância do peixe na dieta alimentar dos açorianos são também apresentados elementos sobre cada uma das espécies com desenhos científicos, para além dos processos usados para a confeção, técnicas utilizadas na pesca, a caça de baleia e ainda pequenas histórias humorísticas sobre o tema, que são recorrentes nos livros de Augusto Gomes.
Outra obra essencial para conhecer os recursos marinhos existentes nos Açores é o “Guia do Consumidor do Pescado dos Açores”, uma edição do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores (2012), da autoria de Les Gallagher, Filipe Porteiro, Carla Dâmaso e Ricardo Serrão Santos.
O livro apresenta dados sobre cerca de 70 espécies de peixes e duas dezenas de crustáceos e moluscos existentes nos mares dos Açores com a indicação de qual a melhor escolha para o consumo, a sua biologia, estado de conservação das espécies e artes de pesca. Trata-se, pois, de uma obra que foi elaborada no âmbito do projeto CEPPROPESCA 2 que reúne a informação essencial sobre os recursos marinhos existentes nos mares dos Açores.
Apesar de já haver referenciada cerca de uma centena de espécies que podem ser capturadas nos mares dos Açores, apenas uma parte, talvez cerca de 20 por cento, é utilizada com regularidade na gastronomia regional. Isso quer dizer que existem muitas espécies de peixes que podem e devem chegar à mesa dos açorianos. Embora nos últimos anos tenham aumentado o consumo de espécies que são mais recorrentes como cavala, goraz, veja, abrótea, congro, cherne ou chicharro, ainda existem as que raramente são capturadas como a castanheta, choupa, gralha-à-ré, peixe-cão ou xaputa, entre outras.
A atividade piscatória nos Açores continua a trazer pouco rendimento para quem sai para o mar e enfrenta condições adversas de trabalho. Há muito tempo que o circuito de comercialização de pescado é dominado pelos intermediários que se apressam a colocar nos mercados de exportação as espécies de pescado com maior valor comercial e ficar com o valor acrescentado dessa atividade.
Por outro lado, a necessidade de se impor medidas restritivas às capturas, tendo em vista a preservação das espécies, que embora sejam necessárias e inevitáveis são também uma forma de limitar o crescimento dos rendimentos de uma atividade onde a sua distribuição continua a ser pouco justa.
Mas apesar de todos esses constrangimentos, os Açores são uma das regiões de Portugal onde se pode consumir peixe fresco de várias espécies e de qualidade superior. É necessário aproveitar todo esse potencial na vertente gastronómica de cariz mais tradicional, mas também ao nível da inovação. Existe muito caminho ainda por explorar.
Hélio Vieira
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