- Hélio Vieira
Gostaria de começar por agradecer o honroso convite que o Município da Horta, o Museu da Horta e restantes organizadores me dirigiram para participar nos trabalhos do Saborea – O Faial à Volta da Mesa. 2º Encontro de História da Alimentação dos Açores, iniciativa que é um importante fórum para partilha de conhecimento sobre diversos aspetos da Cultura Gastronómica açoriana.
Realço a expressão Cultura Gastronómica porque é, cada vez mais, importante que esse conceito seja utilizado. Se a alimentação é essencial para se conhecer a identidade de um povo, então a gastronomia deve ser devidamente considerada e estudada como ato cultural por direito próprio e não encarada da forma redutora como o simples ato de comer.
Creio que estes encontros sobre a história da alimentação dos Açores, que tiveram início o ano passado em Angra do Heroísmo e que agora prosseguem na Horta, são um passo importante nesse sentido, pela diversidade de qualidade de abordagens e que se espera, ou melhor, se exige, que tenham continuidade nos próximos anos.
Cabe-me a mim, no âmbito das intervenções deste encontro previstas para o dia de hoje, abordar os aspetos relacionados com a difusão digital da nossa gastronomia, tendo por base o projeto COZINHA AÇORIANA, apresentado, de forma sucinta, num vídeo produzido há poucos dias.
Trata-se de um modesto vídeo de produção “caseira”, tal como acontece com todos os conteúdos disponibilizados no COZINHA AÇORIANA, mas que contém um segredo, uma marca de futuro que passo a desvendar – boa parte do seu conteúdo foi produzido com o recurso à Inteligência Artificial. Quase todo o roteiro do vídeo foi composto por um robot da aplicação Chat GPT que recolheu a informação online disponível sobre o site cozinhaacoriana.pt e a voz do narrador resulta do recurso a outra aplicação digital que consegue converter um texto em apontamento de voz.
O que se pretende com esta abordagem lateral ao tema dessa intervenção é deixar uma referência sobre o facto de o nosso mundo caminhar, a passos largos, para uma nova era, onde o conhecimento está em todo lado como nunca esteve, sendo admiráveis (se calhar até assustadoras) as potencialidades da Inteligência Artificial para tudo aquilo que vamos fazer nas nossas vidas no presente e no futuro.
O projeto COZINHA AÇORIANA surgiu, em janeiro de 2019, com o propósito de divulgar as receitas da cozinha tradicional açoriana e de ser, também, uma janela para a inovação que tão importante pode ser num contexto da nossa afirmação gastronómica.
No site cozinhaacoriana.pt estão já disponíveis para consulta, em qualquer parte do mundo, cerca de uma centena de receitas tradicionais de diversas ilhas e também algumas “experiências” de autor.
Para além desse repositório de receitas, o cozinhaacoriana.pt apresenta, com frequência, notícias sobre eventos relacionados com gastronomia ou promoção de produtos regionais. Também dá atenção às atividades desenvolvidas pelos seus parceiros – Marca Açores, Supermercado Guarita e Uniqueijo e disponibiliza alguns artigos de reflexões sobre temas como: “Cozinha açoriana: Um património a preservar”, “Gastronomia açoriana em livros”, “Receitas de família: Segredos por desvendar”, “Inovar nos sabores”, “Peixe dos Açores” ou “Doçaria dos Açores”.
Os dados sobre os acessos ao cozinhaacoriana.pt, referentes aos últimos 12 meses, indicam que foram mais de 170 mil visitantes, sendo a maioria deles oriundos de Portugal (mais de 75%) e os restantes de cerca de três dezenas países, dos quais se destacam os Estados Unidos, Canadá e Brasil.
Todas as publicações do cozinhaacoriana.pt são reproduzidas nas redes sociais do COZINHA AÇORIANA (Facebook, Instagram e Twitter), onde as respetivas páginas têm, no seu conjunto, alguns milhares de seguidores.
Outro pilar importante do projeto COZINHA AÇORIANA é o canal de Youtube. Com recurso a meios limitados, foram produzidos cerca de seis dezenas de vídeos em três anos. Nas três temporadas de “Sabores da terra e do mar” são disponibilizados 30 vídeos com a confeção de receitas tradicionais dos Açores. Em “Alcatras há muitas!”, dez vídeos sobre esse ex-libris da gastronomia terceirense, cada uma delas contendo um ingrediente base diferente. Por último, foram publicados, recentemente, outros dez vídeos da série “À Volta da Mesa”, contendo conversas com dez personalidades sobre a relação da gastronomia com a história, antropologia, etnografia, literatura, ensino da cozinha, receitas tradicionais, enoturismo e os caminhos da inovação a percorrer pela gastronomia açoriana.
Se noutros tempos as receitas eram segredos de família bem guardados como é exemplo esta Agenda Comercial do ano de 1925, onde uma distinta família de Angra do Heroísmo anotou, ao longo de várias décadas, as mais variadas receitas de bolos e outra doçaria e ainda alguns pratos de peixe e carne e sopas, muitas delas de notória influência da cozinha internacional, passou-se, depois, para uma fase, a partir das últimas décadas século XX, marcada pela publicação de alguns livros de receitas açorianas, graças ao extraordinário trabalho de Augusto Gomes, pessoa com quem privei na minha juventude e a acompanhei, nessa altura, algum do seu trabalho de pesquisa e que culminou com a recolha de centenas de receitas da cozinha tradicional açoriana e que permitiram a edição de livros que serão sempre uma referência para quem pretende entender o contexto e as dinâmicas alimentares das gentes das nossas ilhas.
Mas nos dias de hoje, cada vez mais se dispensa o caderno familiar com os segredos das iguarias que são especialidade de família ou o livro de receitas que se guarda na biblioteca de casa.
Agora é muito comum ver gente a cozinhar com o telemóvel ou o tablet por perto para se poder certificar dos passos a seguir nesta ou naquela receita especial para impressionar familiares e convidados. Afinal estamos na idade digital!
Sem querer abusar da vossa paciência, peço mais alguns minutos da vossa atenção para partilhar convosco duas ou três ideias sobre a Cultura Gastronómica dos Açores.
Numa altura em que se caminha no sentido de valorização do nosso património gastronómico é necessário aprofundar o estudo desta temática de modo a que ela possa ser melhor conhecida e valorizada.
Mas para que isso aconteça há ainda muito por fazer. A história da alimentação açoriana continua por fazer e não existe um dicionário sobre a gastronomia regional.
As publicações de referência sobre a gastronomia açoriana ainda são escassas, sendo honrosas exceções os livros de referência de Augusto Gomes (quatro) ou os de Zita Lima e António Cavaco, aos quais devemos acrescentar uma publicação mais recente, com coordenação de Duarte Nuno Chaves, que reúne um interessante conjunto textos de académicos do espaço da Macaronésia sobre o património gastronómico e vinícola.
Por outro lado, torna-se urgente qualificar a nossa da restauração numa altura de crescimento do Turismo, valorizando alguns dos nossos sabores e produtos tradicionais.
Numa conversa com o chef terceirense Paulo Lourenço, que integra o último vídeo da série “A Volta da Mesa” do canal de Youtube do COZINHA AÇORIANA, ele realça aquilo que todos nós reconhecemos, mas nem sempre valorizamos: a excelência dos produtos regionais como a carne, o peixe, os lacticínios, os hortícolas ou os vinhos. “Nós temos tudo o que é bom. Qualquer chef gostaria de cozinhar nos Açores”, realça o chef Paulo Lourenço.
Se temos tudo isso e cada vez mais gente que sai das nossas escolas profissionais com elevado nível de qualificação para alguns dos melhores restaurantes nacionais, porque não avançamos no sentido da consolidação e valorização da nossa oferta gastronómica?
Deixo aqui este repto para que se reflita a sério sobre o assunto porque não há mais tempo a perder!
Mia Couto, um dos mais importantes escritores do espaço da lusofonia e que já esteve nos Açores, onde certamente degustou alguns dos nossos pratos típicos escreveu o seguinte:
“Cozinhar é o mais privado e arriscado ato.
No alimento se coloca ternura ou ódio.
Na panela se verte tempero ou veneno.
[…]
Cozinhar não é serviço.
Cozinhar é um modo de amar os outros.”
Que assim seja!
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Comunicação apresentada no Saborea – O Faial à Volta da Mesa. 2º Encontro de História da Alimentação dos Açores, na Horta, a 29 de março de 2022
Fotografias: Roberto Saraiva/CMH