O itinerário gastronómico dos Açores não fica completo sem que se percorra o caminho que nos leva aos lugares das coisas doces.
A doçaria tradicional açoriana caracteriza-se pela sua diversidade e remota aos tempos do povoamento das ilhas, mas conheceu o período de maior evolução a partir dos séculos XVIII e XIX.
Os primitivos doces que se confecionaram nas ilhas resultaram dos contributos trazidos de diferentes zonas do país e estrangeiro de onde vieram as famílias de povoadores. Com o passar do tempo, a doçaria açoriana, particularmente abundante na Ilha Terceira, foi integrando novos ingredientes como as especiarias e mel-de-cana que a naus da Rota da Índia deixavam em Angra na torna-viagem. Mais tarde, por via de algum contacto com exterior da burguesia açoriana e de uma nova vaga de fixação de famílias de estrangeiros nas ilhas, começaram a surgir, nas casas mais abastadas, doces e bolos com origem francesa, inglesa e de outras paragens.
Continua a haver a tendência de atribuir à doçaria tradicional açoriana uma grande proveniência conventual. De facto, os doces confecionados nos conventos açorianos, sobretudo em Angra onde existiram em maior número, assumem algum relevo, sejam eles “miúdos” (queijadas) ou de tacho. Mas se lançarmos um olhar pela doçaria que existe por todas as ilhas vamos encontrar muitos exemplos que resultaram da criatividade das doceiras das casas abastadas da burguesia e da nobreza, embora em alguns desses doces seja mais ou menos notória a influência conventual pelo uso de ingredientes como o açúcar e os ovos (especialmente gemas).
Nas zonas rurais e pobres a doçaria teve pouco significado ao longo dos tempos e o que se fazia destinava-se apenas a ser consumido nas datas festivas. Se tivermos em conta que alguns dos ingredientes como os ovos e o açúcar foram produtos de luxo até meados do século XX, entende-se porque era escassa a doçaria nas casas das gentes pobres. Os ovos serviram, durante muito tempo, de moeda de troca por outros bens que eram bem mais necessários nas casas pobres.
Apesar da sua diversidade e riqueza, a doçaria açoriana continua a ser pouco conhecida. Quando se pede a alguém para fazer referência os doces açorianos, surgem sempre os mesmos: Queijadas de Vila Franca do Campo, Bolos D. Amélia, Queijadas da Graciosa ou as Espécies.
Mas há muito mais para provar em diferentes ilhas. Correndo o risco de faltarem alguns doces “miúdos” que se podem considerar significativos, aqui ficam algumas sugestões.
Começando pelo grupo Oriental, na ilha de Santa Maria, vai encontrar os Biscoitos de Orelha ou as Cavacas, enquanto na ilha de São Miguel pode provar as Queijadas de Vila Franca do Campo, os Bolos Lêvedos, as Esperança ou as Malassadas. Chegando à Terceira, terá muito por onde escolher porque é a ilha dos Açores onde existe maior diversidade e quantidade de doces. Sendo assim, para além dos Bolos D. Amélia (feitos em honra da última rainha de Portugal), poderá deliciar-se com as Cornucópias, Barrigas de Freira, Caretas, Ladrilhos Espanhóis, Camafeus, Papos de Anjo, Rebuçados de Ovos, Toucinho-do-céu, Rochedos, Africanos, Covilhetes de Leite, entre outros que fizeram as delícias nas casas abastadas ou nos conventos de Angra ao longo dos tempos e depois nas pastelarias mais emblemáticas da cidade como a Athanásio, Leitaria Regional, Central e Lusa e mais recentemente, O Forno.
Seguindo viagem pelas restantes ilhas do grupo Central, damos um salto à Graciosa onde para além das Covilhetes de Leite (agora conhecidos como Queijadas da Graciosa), não se pode deixar de provar do Pasteis de Arroz. Em São Jorge, encontramos um dos mais peculiares doces açorianos – as Espécies, que se caracterizam pelas especiarias no recheio. No Faial, fazem-se as Fofas (“parentes” das Malassadas de São Miguel ou das Filhoses da Terceira). No Pico, encontramos em destaque o Arroz Doce que também se faz nas restantes ilhas dos Açores. Indo até ao grupo Ocidental, pouco se encontra nas Flores e Corvo no que se refere a doces tradicionais.
Quando aos doces de tacho ou de colher e bolos existem vários que integram o receituário açoriano, dos quais se destacam os pudins (Conde da Praia, Feijão, Chá Verde, Maracujá, Ananás, Mel, entre outros), doces (Vinagre, Leite, entre outros) e bolos (Laranja, Natal, entre outros).
Existem receitas comuns a todas as ilhas, sendo a massa sovada o melhor exemplo disso mesmo, já que faz parte das festividades do Divino Espírito Santo. Aliás, a doçaria está ligada, não só ao Divino Espírito Santo, como a outras épocas festivas como o Carnaval, a Páscoa e o Natal.
Esta viagem pela mais significativa doçaria açoriana não poderia terminar sem uma referência especial ao Alfenim. Este curioso doce, elaborado com açúcar, água e vinagre terá origem mourisca. Com uma pasta de açúcar, as mãos hábeis das pessoas que ainda fazem o doce (restam pouco mais de meia dúzia na Terceira e Graciosa), moldam peças com formas de animais, flores, rosquilhas pequenas, cestinhos, figuras humanas ou pernas ou braços.
Para além da sua peculiar confeção e beleza das peças moldadas, o Alfenim é objeto de oferenda em promessas do Divino Espírito Santo, o que faz com que tenha um significado transcendente que vai para além de se tratar de um simples doce.
É urgente passar o testemunho da arte do Alfenim às novas gerações para que nunca faltem mãos para fazer meada com os fios de açúcar.
Não podemos deixar de ouvir alguém nas arrematações das festas dos Impérios do Divino Espírito Santo gritar – “Quem dá mais!” por uma peça de Alfenim.
Hélio Vieira
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