Herdeiros de uma gastronomia de matriz portuguesa, decorrente da dieta mediterrânica, os açorianos sempre encontraram os meios necessários para assegurarem a sua alimentação ao longo dos tempos.
Ainda antes do povoamento, já algumas ilhas dos Açores haviam sido fornecidas de animais de modo a testar as capacidades de subsistência e prover o abastecimento de víveres. Poucas décadas depois dos primeiros povoadores portugueses e estrangeiros terem chegado às ilhas localizadas no meio do Atlântico, era já abundante a criação de vacas, porcos e ovelhas e de algumas culturas como o trigo que se exportava para o continente no início do século XVI.
Explorando as peculiares condições edafoclimáticas das ilhas de clima temperado marítimo, os açorianos sempre souberam tirar da terra aquilo que necessitavam para se alimentarem, mantendo as práticas agrícolas que vinham dos primeiros tempos do povoamento ou introduzindo outras culturas que chegaram até nós graças à abertura ao Novo Mundo por via dos Descobrimentos. A diversificação das culturas foi uma realidade ao longo dos séculos nas ilhas atlânticas e um importante alicerce da sua economia graças à exportação daquilo que se produzia. Ciclos como o do trigo ou da laranja foram importantes motores da economia açoriana até ao século XIX.
Mas se a terra revelava sempre generosidade aceitando quase todas as sementes que lhe eram lançadas, no mar os açorianos também encontraram, desde os primeiros tempos, uma fonte variada de alimento com peixe e marisco. A maioria das espécies piscícolas que hoje estão presentes na nossa gastronomia já existiam, de forma abundante, nas águas atlânticas que banham as ilhas açorianas quando chegaram os primeiros povoadores.
Toda essa riqueza vinda da terra e do mar tem passado pela mesa dos açorianos ao longo de mais de cinco séculos.
A confeção dos alimentos tendo por base técnicas e hábitos consolidados no território de Portugal continental por influência romana e muçulmana manteve-se, no essencial, inalterada ao longo dos tempos nas ilhas, mantendo-se as suas características e processos de cozedura dos ingredientes algo acentuada.
A gastronomia açoriana foi percorrendo, ao longo dos tempos, um caminho de passos lentos, incorporando aquilo que sempre teve e o que vinha chegando de lugares remotos como a Índia das especiarias ou as culturas do milho e da batata das Américas.
Mas para além da introdução de novos produtos, a gastronomia açoriana também soube adaptar-se à evolução ditada pelos tempos e aos processos de outras culturas, sendo uma realidade a influência de cozinhas como a inglesa, francesa, flamenga ou hebraica, sobretudo, na denominada “cozinha rica”, presente nas casas das famílias mais abastadas das ilhas. Quando se faz referência à “cozinha rica” (senhorial), não se pretende minimizar a “cozinha pobre”, (do povo), que embora com recursos mais modestos nos alimentos e processos de confeção, é igualmente valiosa e muito importante para o património gastronómico dos Açores.
A diversidade faz com que a gastronomia açoriana seja hoje difícil de caracterizar. O modo de confecionar uma determina determinada receita é diferente em cada uma das ilhas e até mesmo dentro do mesmo espaço territorial.
As sopas do Divino Espírito Santo fazem-se em todas as ilhas de forma diferente e o mesmo acontece, no caso da Ilha Terceira, em relação à Alcatra, um dos pratos mais emblemáticos da gastronomia açoriana. Essa realidade também existe nas sopas ou os caldos de peixe. Percorrendo as ilhas, podemos encontrar variantes que são ditadas pela substituição de alguns ingredientes ou em diferentes processos de confeção.
Tendo em conta essa realidade, será legítimo dizer que existem várias gastronomias nos Açores? Talvez sim ou talvez não. Depende da abordagem. No geral, temos uma gastronomia em que existem pontos de contacto, mas que preserva as singularidades de cada lugar e que podem ser justificadas pelo isolamento secular a que estiveram sujeitas as populações de nove ilhas que constituem o arquipélago.
A bibliografia sobre a gastronomia açoriana é escassa. São poucos aqueles que se dedicaram especificamente ao seu estudo. É evidente a faltam obras ou estudos de referência, sobretudo, ao nível da história da gastronomia açoriana. Quase tudo o que está publicado encontra-se de forma dispersa e no contexto de outras abordagens à historiografia mais ampla das ilhas, salvo honrosas exceções.
O projeto com a designação COZINHA AÇORIANA que incluí um site, redes sociais e, possivelmente mais tarde, um canal de vídeos no Youtube, pretende ser um contributo para a preservação e divulgação do património gastronómico açoriano, sendo concretizado através de um ou outro apontamento sobre o contexto histórico, mas também e sobretudo, um espaço publicação de receitas de pratos açorianos na sua forma tradicional ou, então, na variantes de autor, porque para além de se defender a tradição é preciso também dar a devida atenção à componente da inovação.
Hélio Vieira
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